História #48 – O Doutor Sérgio.

Eu estudei no Colégio Anglo Latino na Aclimação. O Colégio Anglo Latino tinha um diretor master blaster chefe dos outros diretores chamado Doutor Sérgio. Ele não era médico mas todo mundo tinha que se referir a ele como Doutor Sérgio.

O tal do Doutor Sérgio proibia alunos com cabelo comprido de estudar na escola “dele”. Eu, por outro lado, adorava cabelo comprido e usava o meu até o meio das costas independente da opinião do Doutor Sérgio. A diversão do Doutor Sérgio era perseguir e capturar a meia dúzia de moleques com cabelo comprido que estudavam no Anglo Latino e obrigá-los a cortar seus cabelos compridos. A minha diversão era fugir do Doutor Sérgio.

Quando ele aparecia no pátio do colégio eu me escondia no banheiro da escola até ele desaparecer. Quando ele aparecia na classe eu me escondia em baixo da carteira. Quando eu percebia que ia cruzar com o Doutor Sérgio na rua eu colocava um boné na cabeça.

Eu consegui fugir da tesoura do “Sergião” por muitos anos. Até que um dia… quando eu estava no primeiro colegial… em uma fatídica manhã de quinta-feira… no início da aula do Professor Arlindo de Química… o Doutor Sérgio meteu os olhos dele naquela janelinha que tinha nas portas das classes e me viu sentando lá no fundão com os meus lindos cabelos ensebados de Capitão Caverna.

Não deu tempo para eu me esconder. Na hora que eu vi ele, ele me viu.
O Doutor Sérgio então abriu a porta a falou, “Professor, me dá licença. Ricardo, venha aqui agora!”

Eu então levantei da minha carteira e sai da sala.

O Sergião fechou a porta da sala olhou para mim e disse, “Moleque, na MINHA ESCOLA homem tem cabelo de homem. Essa porcaria que você tem ai não é digno de um homem. Você está suspenso da escola até cortar esse cabelo que nem homem”.

Eu então chorando pra caraio… olhei para o Doutor Sérgio e em meio a lágrimas disse, “Mas mas mas… eu não tenho dinheiro para cortar cabelo”,
O Doutor Sérgio então disse, “Isso não é problema”, ele então abriu a carteira e me deu 50 cruzeiros novos.

“Mas mas mas mas, minha mãe e o meu pai trabalham o dia inteiro… ninguém tem tempo para me levar para cortar cabelo”,

“AHHHH, mas isso também não é problema”, disse o Doutor Sérgio que então me levou até a porta do colégio, chamou um dos perueiros e disse,
“Armando, pega a perua do colégio e leva esse moleque para cortar cabelo lá no Toninho do Posto atrás do Parque da Aclimação. E só traga esse moleque de volta quando estiver com cabelo de homem!”,

“É para já Doutor Sérgio! Moleque, você não tem vergonha de usar esse cabelo de mulher??? Se fosse o meu filho eu já tinha descido o cacete em você. Seu vagabundo!!! Hoje você vai o que é bom para tosse”.

Em 5 minutos chegamos no barbeiro. “Toninho, o Doutor Sérgio pediu para você cortar o cabelo desse moleque como se fosse homem”, o barbeiro perplexo respondeu,

“Ok… mas… como assim? Cade os pais dessa criança?”, “Pais o caraioooo! O Doutor Sérgio mandou cortar o cabelo dele! Mete a máquina 2 na cabeça do moleque. Pode cortar!”,

Eu então sentei na cadeira do barbeiro já quase desidratado de tanto chorar e vi a máquina 2 do Toninho acabar com a minha cabeleira.

Naquela época o meu cabelo ia até quase o meio das costas.

Em 10 minutos o barbeiro terminou o trabalho.

“Agora sim!!! Agora você está com cara de homem!”, disse o motorista que pagou o barbeiro com o dinheiro do Doutor Sérgio e me levou de volta para o colégio.

Chegando lá, fomos direto para a sala do Doutor Sérgio que olhou para mim e disse, “Agora sim!!! Agora você está com cara de homem. Agora você pode estudar na minha escola”.

O Doutor Sérgio então pegou no meu braço e me levou de volta para a aula de química que ainda não tinha terminado. Tudo isso aconteceu dentro de um período de 30 minutos.

Quando chegamos na frente da minha sala, o Doutor Sérgio abriu a porta e disse com todo orgulho do mundo, “Professor, dá licença. Você tem um aluno novo”, e ai eu entrei na sala na frente de 60 alunos… todos olhando para mim perplexos…. mudos.. ninguém riu… ninguém falou nada… todos espantados… eu então de cabeça baixa fui até a minha carteira lá no fundo da classe e sentei.

Depois que a porta se fechou, o Professor Arlindo de Química veio até a minha carteira e ajoelhado no chão falou, “Ricardo, que absurdo foi esse! Eu nunca tinha visto algo assim na vida. Isso não se faz com uma criança. Você está bem? Você quer que eu pegue alguma coisa para você comer? Você quer que eu ligue para os seus pais? Você está bem?”, ai então com a maior calma do mundo, eu levantei os olhos para o professor e disse,
“Professor, tá tudo bem. A escola é dele. Ele manda. Ou eu obedeço ou eu saio daqui. Eu não posso sair daqui. Então, eu tenho que obedecer. Ele está fazendo o trabalho dele. Tá tudo certo. Eu não estou com raiva dele, nem de ninguém. Tá tudo tranquilo.”

Eu imagino hoje que as 60 crianças que estudavam comigo naquela classe devem contar essa história para os amigos e ninguém acredita.

Imagina se isso acontecesse nos dias de hoje! Maluco, né?!

Os anos se passaram, o Colégio Anglo Latino quebrou por má gestão e sei-lá-mais-o-quê. O Doutor Sérgio passou a dever as calças e foi para o buraco.

Mais alguns anos se passaram. A minha irmã conheceu um cara e resolveu casar. Quem então a minha mãe convidou para a festa de casamento da minha irmã?

O Doutor Sérgio e família.

Durante a festa a minha família estava super feliz. Em um determinado momento eu reparei que o Doutor Sérgio não parecia tão feliz assim sentado sozinho no canto da festa.

Eu então fui até ele e disse, “Doutor Sérgio, eu queria que você soubesse que você estava totalmente certo sobre TODAS AS COISAS que você falou para mim durante os tempos de colégio. Eu era moleque e não entendia. Hoje eu entendo. Muito obrigado por tudo. Eu apertei a mão dele, dei um abraço, vi um sorriso no rosto dele, e voltei para a festa.

Sabe… independente de ser verdade ou não… o que custa para mim ELOGIAR UMA PESSOA quando ela mais precisa?

Eu acredito que a vida é feita de ciclos.

Eu acredito que temos que encerrar todos os ciclos da nossa vida da melhor maneira possível.

Mesmo que você tenha passado pelo mais épico de todos os bullyings.

VAMOS QUE VAMOS!!!

Ricardo Jordao Magalhaes

Eu vou escrever 50 histórias sobre a minha vida até o dia do meu aniversário de 50 anos no próximo dia 29 de dezembro. Se você perder alguma, confere no http://blogdojordao.com

23 comentários em “História #48 – O Doutor Sérgio.

  1. Jordão, você é do caralho, foda demais todos os seus textos, da prazer em ler cada um deles da forma que você escreve. Nunca deixe de escrever!!!

  2. Jordão, você é do caralho!!! Que texto foda, a forma que vc escreve e prende a atenção do leitor é foda!!!! Quando acabo de ler ja fico na expectativa de quando você vai lançar outro texto foda!!!

    1. Muito prazer Jordão,
      Hoje estou com 56 anos e estudei lá +/- em 1979. Já tremi de medo na sala do Dr Sérgio. Hoje acho muita graça. Lembro do Toninho, do Dr Arcuri, do Nezinho, professora Lucy, Walter e por aí vai. Eram outros tempos, plena Ditadura. Sinceramente, não gostei daquela época. Só de ir no sítio do Arcuri, comer muito churrasco. Abraços.

  3. Jordão, o que tu tem de maneiro, tinha de feio pacaraio no colégio!! Se tivéssemos a mesma idade, faríamos parte do mesmo clube… Clube dos estranhos do Colégio! Hahahaha!! Abraço meu camarada!

  4. Sou do Anglo Latino. Sempre serei. 10 anos antes de vc , pela conta que fiz. Sua historia me arrepiou. Vivemos tudo isto. Dr. Arcuri ( monarquista roxo. Achava que fosse o unico). Serjão e o Toninho. Que saudade. Abraço.

  5. Esse episódio que bem narraste foi um abuso infantil, se me lembro bem em 1990. Plena democratização, plena volta de um clima mais arejado, e o descendente idiota do fundador agindo como ditador. Interessante a visão de um velho decrépito anos depois, mas não engulo o acolhimento e o ‘dou a outra face’ não irônico do episódio do casamento. Foi imoral o que ele fez, e infelizmente o colégio era uma máquina de fabricar fascistas, que nasciam por medo, por ‘mimetismo’ (conforme a teoria de Rene Girard). Agora, cabe ressaltar o seguinte: a figura era antes de qquer coisa um HOMEM MEDÍOCRE. Uma representação perfeita do ””filho do dono”’, o cidadão médio e idiotizado, cruel e ignorante, que usava de poder herdado e posses pra intimidar.

  6. Muito digno da tua parte, Jordão, o tapa na cara com luva de pelica que o destino te encarregou de aplicar. Você é um ser humano melhor do que eu. Também estudei no Anglo e, se houvesse um sentimento que eu cultivasse a respeito dos Arcuri, esse sentimento seria o desprezo. Hoje simplesmente sinto por eles o que sinto por uma mobília velha. É parte do meu passado e não me serve para mais nada.

  7. Oi Ricardo, acho que não se lembra de mim ,sou o Rogério do vollei ,tenho muita saudades deste tempo,principalmente da sua pessoa e do Junior Caldim,por onde vcs andam ?

  8. Meu pai trabalhou o Anglo por muitos anos. Era segurança e porteiro de lá…Ia me buscar na escola com um Fusca branco com a logo do Anglo na porta. Me achava o máximo andando naquele carro rsrs. O nome dele é Clécio e ele tem boas recordações daquele lugar.

  9. Estusei lá e conheci o Prof. Arcuri e o Sérgio. O Sergio tinha uma voz meio fina e era meio histérico. Sempre puto com o mundo. O que ele fez com você foi um absurdo. Me surpreendi com o final da sua narrativa. Um gesto de muita grandeza. No fundo todos lamentamos o fechamento do colégio. Foi o melhor que estudei. Um abraço.

    1. Fui dar um google do nada so p ver o que aconteceu c a escola e cai no seu blog, estudei pouco tempo lá, no comecinho dos anos 90, lembro do “Sergião” e das monitoras de corredor, dona Rosa (?), da sala do inspetor(?) de ter uma caderneta p entrar na escola e ter q carimbar a data. Mas a frase que nunca saiu da minha cabeça foi do pai do Sergião, professor de história, “tome leiba” toda vez q alguem pedia p ir ao banheiro.

  10. Jordão, que história incrível! Sei bem como era a família Arcuri – principalmente o “Doutor Sérgio”, que queria ser chamado assim, pois tinha sido Delegado. Estudei no Anglo de 1979 a 1981 e, hoje, aos (quase) 57 anos, lembro de muita coisa – inclusive, lembro do Ricardo Reis, que fez comentário aqui. O patriarca Arcuri era divertido, no final; Toninho Arcuri era nosso preferido: rígido, mas muito justo, e nunca deixou de ouvir um aluno. Mas, se isso te serve de consolo, saiba dessa – “Dr. Sérgio” era “dono do pedaço” (da calçada, inclusive) nas horas em que todo mundo abaixava a cabeça… mas quem se lembrar da invasão das casas da seita Moon pelos alunos do Anglo, em 1981, vai recordar que “Dr Sérgio” ficou bem quietinho, dentro do prédio, enquanto que, na Muniz de Souza, a coisa pegava fogo – literalmente!

  11. Estudei 1967/ 1968 Dr Arcuri, seu filho Sérgio e seu Sinca Tufão azul marinho sempre perseguindo os alunos que pulavam o muro para cabular aula no parque.

  12. Desculpe, mas não chorei de rir. E dizer que passei por constrangimento parecido c/ o mesmo Dr. Sérgio no Colégio Anglo Latino. No meu tempo, os cabeludos podiam usar “redinha” na cabeça mediante autorização do pai e firma reconhecida em cartório. É mole ? Bons tempos aqueles. E confesso ter sentido uma profunda tristeza quando soube que o nosso Colégio Anglo Latino (entra burro e sai cretino) tinha ido p/ o beleléu …

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